terça-feira, dezembro 07, 2004

Hoje vi o quarto cadáver

Depois de um dia exaustivo de trabalho você encara um baita engarrafamento na volta para casa, com direito a carros da polícia e uma pessoa baleada na beira da calçada. Não quis olhar, mas não pude deixar de ver o sangue correndo pelo meio fio. Até me esforcei para não ouvir os comentários dentro do coletivo, algo realmente impossível. As pessoas parecem ter prazer em cenas como esta. Todos se levantam e correm para a janela para observar o corpo caído no chão. “Foi na cabeça, tiro na cabeça. Tem um montão de sangue no chão”, dizia uma mulher com ares de entendida. “Ih, foi agorinha mesmo. Mais um pouquinho e sobrava pra gente”, esbravejava um coroa. Os poucos minutos do ônibus parado ao lado da tragédia renderam uma eternidade. Eu, de olhos fechados e cabeça baixa, tampava meus ouvidos tentando fugir dali.

O trânsito anda, o corpo e o sangue ficam para trás, mas os comentários se estendem. Agora cada um resolve contar uma história de violência urbana. “Esses pivetes que ficam aqui me roubaram uma vez, agora não tenho mais pena. Quero mais que morram todos”, dizia cheia de certezas a cobradora. “Meu cunhado foi assaltado aqui mesmo. O cara colocou um canivete no pescoço dele”, depôs o senhor de óculos.

No meio de tudo isso, eu só conseguia pensar naquele cara morto na calçada. Lembrei da moça morta no meio fio na manhã de sábado, quando eu ia para a escola há 15 anos. Ela vestia uma saia jeans igual a minha. Lembrei do menino com um tiro nas costas numa esquina da Linha Amarela, num dia de tiroteio na favela da Maré. Eu também voltava do trabalho naquele dia e ele era só um menino. Lembrei das pessoas mortas dentro do carro todo furado de balas bem em cima de um viaduto em São Cristóvão. Eu ia para o trabalho e as pessoas foram baleadas ali, dez minutos antes d’eu passar. Mas hoje, dentro daquele ônibus, ninguém se importava com o cara morto. Só contavam suas histórias de terror como uma competição para ver quem já passou mais perrengue. E eu só pensava nos cadáveres que já vi.

Quando me levantei para descer, todos se calaram. Ninguém entendeu porque só eu chorava. Ninguém mais acha estranho ver pessoas mortas. Ninguém mais se compadece da morte do próximo. Ninguém mais se revolta com os tiros nas ruas.

Não gosto mais dessa cidade.

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