domingo, setembro 19, 2004

Sobre a sedução

Aquele jeito. Parado, ombros arqueados, meio curvado para frente. Uma das mãos no bolso e ele ouvia atentamente a menina à sua frente falar. Um figurino despojado, nada de especial, mas ainda assim ele se faz notar. Quando ela corre os olhos pelo salão quase lotado é nele que pára.

De fato não é um homem bonito. Não é lá muito alto, está um pouco acima do peso, usa o corte de cabelo mais comum do mundo. Em seu rosto não existe nada de exótico ou que faça parte dos padrões vigentes de beleza. Olhos normais, nariz normal e seu sorriso é até meio torto. Seria um cara comum se não lhe despertasse tanto a atenção. Se pôs a observá-lo fixamente por alguns minutos e eis que uma ponta de desejo se apoderou de seu corpo. Ela o reconheceu, já havia tido com o tal em outras épocas, mas o desejo ainda era vivo.

Anos atrás eles dividiam o mesmo ambiente. Encontros diários e conversas informais construíram uma relação formal e amigável. Mas as palavras e pensamentos do rapaz a seduziam dia-a-dia. A cada fato novo apresentado, a cada debate proposto, a cada divagação, mesmo que por pura diversão, ele se fazia mais encantador. Ao final de poucos dias de convivência já eram dele seus desejos mais lascivos. Tanto e de tal forma que nem mesmo os anos afastados, assim como as mudanças físicas inerentes a passagem dos tais, a fizeram esquecer.

Se aproximou e comprovou sua suspeita. Era mesmo ele. Como poderia errar? E ao final da primeira frase do rapaz já estavam lá outra vez todos os pensamentos impuros que costumava ter quando ele se aproximava. Estava mesmo seduzida e não por um corpo, mas por uma mente. Uma sedução imune ao tempo.

sexta-feira, setembro 10, 2004

O imortal da Glória

Conquistou minha confiança ao longo dos anos. Um tempo em que parecia arquitetar tal golpe. Até o grande dia em que me atraiu até sua morada. Se armou de argumentos e motivos, fez as horas correrem rapidamente até o ápice da noite. Seduziu-me com histórias do nosso passado e, ajoelhado ao meu lado me dominando com o olhar, cravou seus dentes em minhas veias sugando meu sangue. O bastante para me deixar indefesa.

Fraca, mas consciente, observava seus trejeitos. Ele me sorria e acarinhava meu rosto com delicadeza. Em nada se assemelhava ao monstro que se tornara ao revelar-me seus perversos caninos. Seus indecifráveis olhos escuros que nunca me deixaram ver o que se passava em seu coração. E que coração? Jamais pude ouvi-lo ou sentir o seu bater. Todos as pistas sempre estiveram à minha frente, mas nunca suspeitei. Agora, acuada no canto do sofá, unia as peças e esperava meu fim.

Não sentia mais meu corpo, aos poucos tudo adormecia, pernas, braços. Mal consegui manter meus olhos abertos e ele continuava ali, me admirando. Parecia esperar minha morte que vinha lentamente. Cruel. Conformei-me em ter aquilo como última visão: um homem lindo a quem eu sonhava um dia pertencer.

Era isso que tinha em mente quando ele levantou-se bruscamente e, num rompante, cortou seu pulso. O sangue escorria por sua mão. Cerrei meus olhos e senti um liquido quente entre meus lábios. Escorria garganta abaixo resfriando meu corpo já inerte. Meu coração parou, o ar não entrava mais em meus pulmões. Sentia cada artéria de meu corpo congelar. Uma dor impensável.

Senti frio. Abri meus olhos e ainda estava lá, no mesmo sofá. A sala vazia, nenhum vestígio de sangue nem de ninguém. Ele não estava mais ali. Levantei devagar e, atordoada, corri até o espelho mais próximo. Examinei meu pescoço, nenhum sinal. O apartamento vazio me deu a certeza de que tudo foi um sonho ruim. Sai pela porta sem olhar para trás.

Mais de um ano e eu não esqueço essa noite. Minhas mãos frias e minha fome insaciável me fazem crer que não foi um sonho. Ele me tirou a vida e me deu outra. Sou parte dele agora. Por toda eternidade.

terça-feira, setembro 07, 2004

"The Origin Of Love"

Gosto tanto de olhar para ele. Isso me dá a certeza de que temos metades nossas vagando por ai.

É bom mesmo olhar para ele. A camiseta básica um número acima, a calça capri e as sandálias de couro nos pés, tão a minha cara. Os cabelos desalinhados, as mãos grandes e macias, olhos pequenos, boca carnuda, tão dos meus desejos. A gargalhada gostosa, o abraço aconchegante, o olhar doce, tão das minhas vontades. Os projetos, os sons, os filmes, os sonhos, tão dos meus gostos.

O vazio que deixa quando está longe, a saudade que provoca, a falta que faz.... Me sinto tão parte dele, acho ele tão meu que nem sei.

domingo, setembro 05, 2004

Sobre a dormência

Deixou para trás uma semana ansiosa. Dias planejando situações, ponderando motivos e estudando possibilidades. O querer/não querer presente 24h por dia. Um trabalhão. Abafar culpas, exaltar bons momentos, relembrar as coisas ruins, desencavar porquês... Aquilo seria de fato um reencontro.

Por todo o caminho o coração acelerado. Quanto mais se aproximava aumentava a vontade de desistir e voltar. Caminhando a passos pequenos, desses que nunca querem chegar. O medo ao reconhecer o portão. Calafrios ao olhar através das grades.

As horas se arrastam, os assuntos se sucedem até ele finalmente surgir e, lentamente, cruzar a porta. Expressão de absoluta surpresa quebrada pela profunda frieza do "oi". No lugar de todas as emoções que transbordaram por todo o dia só restou o torpor. Uma dormência que impediu terminantemente que seu olhar com o dele cruzasse, que suas palavras a ele se dirigissem, que seu corpo o dele tocasse.