sexta-feira, agosto 01, 2003

Querer ser outro

Tudo bem, todo mundo sabe tecnicamente quem é. Conhece o próprio nome, sabe quem são os pais, os irmãos, tios primos, o lugar onde mora, quem são seus amigos, colegas, inimigos. Sabe quem gosta, quem ama, quem detesta. Tem até documentos que provam quem é, carteira de identidade, de motorista, de trabalho, CPF, número do INSS, certidão de nascimentos, um monte de papéis que comprovam quem você é.

Na primeira fase da vida isso até pode ser confortante, saber quem você é pode ser tão simples quanto responder o nome na chamada em sala de aula ou dizer seu nome quando alguém pergunta: quem é? Você se resume em o queridinho da mamãe, o netinho da vovó, o garotão do titio, o bebê mais fofo do mundo e por aí vai. Os títulos e as características vão crescendo junto com você.

Aí vem a adolescência e tudo parece um horror. Você começa sendo o adolescente! A coisa mais abominável que caminha sobre a terra. Nesse ponto já está inserido em pelo menos 3 grupos distintos, a família, o colégio e o condomínio (na minha época era a rua mesmo). Na família as coisa não mudam muito e, de acordo com o seu grau de agressividade para com seus pais, alguns títulos podem vir a se transformar. O queridinho da mamãe, pode virar o garoto problema, o mau criado, respondão e coisas desse nível. Mas o verdadeiro tormento vem da escola, crianças podem ser cruéis ao extremo (nunca se esqueçam disso). Seus piores defeitos (os físicos são os mais indicados) e maiores medos vão virar seus sinônimos. Basta um centímetro a mais no diâmetro do seu crânio para você se transformar no Cabeção, ou quem sabe uma minúscula protuberância nas orelhas para fazer de você o Dumbo. Alguém descobre que você usou mamadeira até os 11 anos, já era! Você agora terá outro nome, deixa de ser uma pessoa para ser A Mamadeira. Depois disso a saga continua, é mesmo um caminho sem volta. Você deixa de ser o adolescente para ser o jovem, deixa o colégio e vai para a faculdade caçar mais um título. Lá ganha tantos outros, muito parecidos com aqueles do ginásio. Mas o tempo todo as pessoas vão te rotular, te perseguir, te chamar de coisas que nem sempre são aquilo que você sonhou ou pensava ser.

Mas, particularmente, todas estas brincadeiras e rótulos ficam muito simples depois que o amor entra em nossas vidas. Nunca temos tanta vontade de ser outra pessoa do que quando amamos. Tá legal, você sabe que é alguém muito bacana, mas quando banca o idiota na frente do objeto do seu desejo por motivos totalmente desconhecidos... Ser outra pessoa é a única saída. Quando bate aquele desespero de querer se declarar, querer conquistar, mas não saber o que fazer. Você pede um conselho para alguém e ouve: seja você mesmo. Que ódio! É impossível sermos nós mesmo nestas circunstâncias, precisamos de outro, ser outro. Ou quando aquela figura por quem você está perdidamente apaixonado diz que você é o máximo mas namora a outra ou fica com absolutamente todo mundo menos com você? Virar outro é inevitável. As desilusões também deixam este secreto desejo de ser outro. Os traídos que nunca quiseram ser o "outro" estão mentindo descaradamente, os rejeitados que nunca se excomungaram na frente do espelho também estão no mesmo barco.

Agora mesmo eu queria ser a Elba Ramalho e ficar quietinha debaixo do braço daquilo tudo que atende pelo exótico nome de Gaetano.

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